Seis poemas de Herberto
Helder
(1930-2015)
O
coordenador editorial da Assírio & Alvim, Vasco David', e os críticos do
PÚBLICO António Guerreiro e Hugo Pinto Santos escolheram seis poemas de
Herberto Helder. A edição utilizada foi, em todos os casos, a compilação Poemas
Completos (Porto Editora, 2014).
AOS AMIGOS
Amo
devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os
amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com
os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não
os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro
do fogo.
—
Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos
um lugar de silêncio.
De
paixão.
de Lugar (Escolha de Vasco David’)
Sem Título
alguém
salgado porventura
te
toca
entre
as omoplatas,
alguém
algures sopra quente nos ouvidos,
e
te apressa, enquanto corres
algumas
braças acima
do
chão fluido, leva-te a luz e subleva,
tão
aturdidos dedos e sopros,
até
ao recôndito,
alguma
vez te tocaram nas têmporas e nos testículos, alto,
baixo,
com
mais mão de sangue e abrasadura,
e
te cruzaram nesse furor,
e
criaram, com bafo
ardido,
ásperos sais nos dedos, e te levaram,
a
luz corrente lavrando o mundo,
cerrado
e duro e doloroso, acaso
sabias
a
que domínios e plenitudes idiomáticas
de
íngremes ritmos, que buraco negro,
na
labareda radioactiva,
bic
cristal preta onde atrás raia às vezes
um pouco de urânio escrito
um pouco de urânio escrito
de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de
Vasco David’)
BICICLETA
Lá
vai a bicicleta do poeta em direcção
ao
símbolo, por um dia de verão
exemplar.
De pulmões às costas e bico
no
ar, o poeta pernalta dá à pata
nos
pedais. Uma grande memória, os sinais
dos
dias sobrenaturais e a história
secreta
da bicicleta. O símbolo é simples.
Os
êmbolos do coração ao ritmo dos pedais —
lá
vai o poeta em direcção aos seus
sinais.
Dá à pata
como
os outros animais.
O
sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso.
A vida é para sempre tenebrosa.
Entre
as rimas e o suor, aparece e des
aparece
uma rosa. No dia de verão,
violenta,
a fantasia esquece. Entre
o
nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente.
E a bicicleta ultrapassa
o
milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no
instante da graça.
De
pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa.
A pata do poeta
mal
ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se
a flor perdida. A vida é curta.
Puta
de vida subdesenvolvida.
O
bico do poeta corre os pontos cardeais.
O
sol é branco, o campo plano, a morte
certa.
Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.
Se
a noite cai agora sobre a rosa passada,
e
o dia de verão se recolhe
ao
seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
achada? De pulmões às costas, a vida
é
tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela
imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de
rosa interior dá à pata nos pedais
da
confusão do amor.
Pela
noite secreta dos caminhos iguais,
o
poeta dá à pata como os outros animais.
Se
o sul é para trás e o norte é para o lado,
é
para sempre a morte.
Agarrado
ao volante e pulmões às costas
como
um pneu furado,
o
poeta pedala o coração transfigurado.
Na
memória mais antiga a direcção da morte
é
a mesma do amor. E o poeta,
afinal
mais mortal do que os outros animais,
dá
à pata nos pedais para um verão interior.
de Cinco Canções Lunares (Escolha de Hugo
Pinto Santos)
Sem Título
que
eu aprenda tudo desde a morte,
mas
não me chamem por um nome nem pelo uso das coisas,
colher,
roupa, caneta,
roupa
intensa com a respiração dentro dela,
e
a tua mão sangra na minha,
brilha
inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha,
no
toque entre os olhos,
na
boca,
na
rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas,
fiat
cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra,
o
canto comum-de-dois,
o
inexaurível,
o
quanto se trabalha para que a noite apareça,
e
à noite se vê a luz que desaparece na mesa,
chama-me
pelo teu nome, troca-me,
toca-me
na
boca sem idioma,
já
te não chamaste nunca,
já
estás pronta,
já
és toda
de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de
Hugo Pinto Santos)
Sem Título
li
algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando
alguém morria perguntavam apenas:
tinha
paixão?
quando
alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se
tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo
talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo
corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão
pela paixão,
tinha?
e
então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se
posso morrer gregamente,
que
paixão?
os
grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os
grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens
e mulheres perdem a aura
na
usura,
na
política,
no
comércio,
na
indústria,
dedos
conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos
objectos entrando e saindo
dos
dez tão poucos dedos para tantos
objectos
do mundo
¿e
o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode
manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e
fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra
soprada a que forno com que fôlego,
que
alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem
de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham
muito alto a música e que eu dance,
fluido,
infindável,
apanhado
por toda a luz antiga e moderna,
os
cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e
eu me perdesse nela,
a
paixão grega
de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de
António Guerreiro)
Sem Título
cheirava
mal, a morto, até me purificarem pelo fogo,
e
alguém pegou nas cinzas e deitou-as na retrete e puxou o autoclismo,
requiescat
in pace,
e
eu não descanso em paz nas retretes terrestres,
a
água puxaram-na talvez para inspirar o epitáfio,
como
quem diz:
aqui
vai mais um poeta antigo, já defunto, é certo, mas em vernáculo
e
tudo,
que
Deus, ou o equívoco dos peixes, ou a ressaca,
o
receba como ambrosia sutilíssima nas profundas dos esgotos,
merda
perpétua,
e
fique enfim liberto do peso e agrura do seu nome:
vita
nuova para este rouxinol dos desvãos do mundo,
passarão
a quem aos poucos foi falhando o sopro
até
a noite desfazer o canto,
errático
canto e errado no coração da garganta,
canto
que o traspassava pela metade das músicas
—
e ao toque no autoclismo ascendia a golfada de merda enquanto as turvas
águas
últimas
se
misturavam com as águas primeiras
de Servidões (Escolha de António
Guerreiro)
2 comentários:
Gosto muito de conhecer este seu espaço, um espaço bem mais intimista.
Abraço.
Eduardo Júlio
Eduardo Júlio: Obrigado, pelo comentário e pela visita.
Este espaço não irá ter, certamente, as características generalistas do blogue Alpendre da Lua.
Abraço,
Alexandre
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