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Guernica
ou
o manifesto político de P. Picasso
por Ângela Veríssimo
Um dos quadros que melhor transmite todo
o desespero advindo da guerra é o intemporal Guernica de Pablo
Picasso, fazendo plena justiça à expressão "uma imagem vale por mil
palavras". No início de mais um ano, quase no fim do milénio, aqui neste
cantinho do Mundo Ocidental, é tempo de pensar no outro Mundo, cujos povos
vivem em palco de guerra, e para os quais nada resta senão esperar por dias de
paz.
Picasso
não tinha sido muito afectado pela I Guerra Mundial e só com a Guerra Civil
Espanhola se interessou por política, tornando-se vivamente solidário com os
republicanos. As fotografias que aparecem na imprensa no ínicio de Maio de 1937
relativas ao bombardeamento de Guernica (antiga capital do País Basco) em 36 de
Abril tocam-no profundamente. Passado pouco mais de um mês e após 45 estudos
preliminares, sai do seu atelier de Paris o painél Guernica (3.50x7.82
m) para ser colocado na frontaria do pavilhão espanhol da Exposição de Paris de
1937 dedicada ao progresso e à paz.
Rapidamente
o painél se transforma num objecto de protesto e denúncia contra a violência, a
guerra e a barbárie: "O quadro converte-se numa manifestação da
cultura na luta política, ou melhor dizendo, no símbolo da cultura que se opõe
à violência: Picasso opõe a criação do artista à
destruição da guerra"(1).
Donde
vem a genial monumentalidade que faz de Guernica uma obra tão
singular? Na minha opinião, o seu poder advém da carga emotiva que possui.
Efectivamente, o painél não representa o próprio acontecimento, o bombardeamento
de Guernica, mas "evoca, por uma série de
poderosas imagens, a agonia da guerra total"(2), chegando a
constituir uma visão profética da desgraça da guerra que
nos ameaça hoje e que nos ameaçará no próximo século que segundo S.
Huntington "se caracterizará por muitos conflitos de pequenas
dimensões"(3),
devido em grande parte à existência, na actualidade, de mais de meia centena de
estados fragéis e desintegrados. De facto, a destruição de Guernica foi a
primeira demonstração da técnica de bombardeamentos de saturação, mais tarde
empregue na II Guerra. Picasso já em fase pós-cubista, consegue aqui tornar o
acto pictórico na narração objectiva da ideia que formou perante o
acontecimento e da emoção que sentiu. Com ele,"a pintura carrega consigo o
seu património de experiências emocionais" deixando de ser "um
ideal abstracto de beleza formal ou de representação lírica da aparência
vísivel"2. Citando o artista: "Quando
alguém deseja exprimir a guerra, pode achar que é mais elegante e literário
representá-la por um arco e uma flecha, que de facto, são estéticamente mais
belos, mas quanto a mim (...) utilizaria uma metralhadora"(4).
Tecnicamente
tudo em Guernica contribui para a transmissão de emoções
avassaladoras a começar pelo uso da técnica de "collage" de que
Picasso e Braque tinham sido pioneiros em 1911-12 e que o primeiro aqui retoma,
já não "colando" objectos na superfície do quadro mas pintando como
se fizesse colagens; com este Cubismo de Colagens cria-se um conceito de espaço
pictórico radicalmente novo não criado por nenhum artifício ilusionista mas
pela sobreposição dos "recortes" planos, neste caso especifíco em
tons de preto e cinzento atravessados por claridades brancas e amareladas, numa
total ausência da cor, inexoravelmente evocativa da morte.
A
par disso, Picasso recorre a formas dramáticas, violentas, a fragmentações e
metamorfoses anatómicas que se por um lado criam figuras que não aderem a nenhum
modelo "real", por outro exprimem toda a realidade e agonia da dor
insuportável. A comprovar isso atente-se nas várias figuras que o pintor
representa neste quadro que aparentemente livre, obedece contudo a um rigoroso
esquema em termos de construção (imagine-se a tela dividida em 4 rectângulos,
com um triângulo cujo vértice corresponde ao eixo vertical que a divide em duas
partes iguais): a mãe chorando a morte do filho (descendentes da Pietà...) e o
ameaçador touro de cabeça humana, no 1º rectângulo, o "olho" luminoso
do candeeiro que derrama uma luz inóspita (no 2º), a mulher com a lâmpada na
mão recordando-nos a Estátua da Liberdade (no 3º) e o homem que em
desespero levanta os braços ao céu (no 4º). Repare-se ainda no cadáver
empunhando a espada partida (um emblema da resistência heróica) e o cavalo
ferido que aparecem no referido triângulo. O cavalo é à semelhança do touro uma
figura saída da mitologia espanhola; representa o povo que agoniza sob o jugo
opressor do touro, símbolo da brutalidade, das forças do mal.
Hoje,
olhar para Guernica é partilhar o horror que Picasso sentiu há 59
anos perante as imagens da destruição da povoação. Por isso, aqui vai um desejo
para o novo ano: que em 1996 tratados como os de Dayton não fiquem pelo papel e
que haja sempre um pensamento na mente dos homens: GUERNICA NUNCA MAIS!
(1) in "Entender a Pintura",
suplemento nº 2 da revista "Artes & Leilões", tradução de
Margarida Viegas. (continuar)
(2) H. W. JANSON: "História de Arte", 4ª
Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 1989. (continuar)
(4) SECKLER, J.:"New Masses", 3 de Julho de 1945, citado em
"Entender a Pintura", suplemento nº 2 da revista "Artes &
Leilões", tradução de Margarida Viegas
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